A Carne da Terra ou a Pintura Segundo Angela Falcometa
por Marco Antônio Vieira
Marco Antônio Vieira é Doutor em Arte, na linha de Teoria e História da Arte, pela Universidade de Brasília (UnB). Curador independente desde 2007, com exposições com obras de artistas como Rubem Valentim, Athos Bulcão e Vik Muniz, entre outros. Autor de textos críticos e curatoriais para artistas como Marcelo Solá e a eslovaca Lucia Tallova e de artigos publicados no Brasil e no exterior.
Prelúdio
É como se as formações geológicas da terra se manifestassem visíveis. Intensidades rubras, carmins e alaranjadas ardem em nossas retinas. Rios, mares, oceanos de lava âmbar arrastam consigo suas incandescências, como se vê nas pinturas Rubro (2008), Metamorfose (2014), Longo amanhecer (2019) e Império de Hera (2020).
Há mesmo estes momentos em Angela Falcometa, em que tudo é da ordem de uma explosão vulcânico-ocular. Dela, veem-se os rastros capturados pela pintura. Tudo queima, tudo cintila, tudo quase cega, quase ofusca em sua luminosidade no esforço que é a captura do sentido na cor, pela cor, como em Crença, a força que acalma a chama da mente, obra de 2019, em que a formação branca e nebulosa encontra o gris azuláceo como recurso a enfrentar a devastação incendiária da cor laranja.
Mesmo em uma rara composição dominada por tons de cinza como Diamantes, obra de 2016, as zonas cinzentas abraçam a branquidão e dissolvem-se sem, contudo, perder aquilo que as distingue como territorialidade cromática reconhecível, ainda que qualquer rigidez formal seja objeto da ameaça liquefeita que se alastra, arrastando e impelindo as linhas das fronteiras entre as cores a resistirem a fusão. O complexo equilíbrio entre fixidez e fluidez parece constituir-se como uma das pedras de toque da assinatura pictórica de Angela Falcometa.
E mesmo quando a terra, em sua pintura, se confirma terrosa em seus tons ocres acastanhados, tudo é sempre aceso, passional, flamífero. Tudo fulgura, cresta, inflama cromático mesmo na relativa quietude iridescente da série Súplicas de Gaia. É mesmo o sentido mais profundo da terra como lugar de gestação e nascimento, significante que se projeta na mais recente série de Falcometa: Nativas.
A significação da obra de Falcometa insinua-se na topologia do espaço pictórico. Tudo, na superfície de suas obras, é nada senão um compêndio de indícios que remetem ao universo semântico forjado pela artista de como ela o investe materialmente. É de como se conjugam, em sua poética, sentido e materialidade, a partir do que estabelece a retórica do pictórico em suas obras que se anuncia o exercício de leitura de sua pintura.
Entropia e o Abstracionismo como Paixão em Angela Falcometa
Em Falcometa, a pintura se consuma como carne da terra. Em suas composições, é a cor que triunfa em sua materialidade mineral. O pigmento, nas superfícies em que se manifesta a intensidade com que se vive a experiência pictórica como um terreno em que comungam o gesto da artista e aquilo que se faz no espaço daquilo que nos é dado ver, é da ordem de uma entropia.
O entrópico admite a aparente desordem que perturba a soberania do controle absoluto do artista sobre os processos que definem a obra. Em Falcometa, portanto, a gangorra oscila perpétua entre intenção e acaso. O que estes aparentes opostos possuem em comum, entretanto, na fabulação poética da pintora mineira, é a reiterada afirmação da materialidade que avizinha sua entendimento da experiência pictórica das correntes da pintura europeia do século XX reunidas sob o que se nomeia na História da Arte informalismo pictórico.
A gama de tendências abstratas e gestuais abarcadas pelo informalismo pictórico abarca distintas abordagens da abstração lírica e da pintura matérica e se distingue das tendências geométricas do abstracionismo pictórico. A proximidade destes tratamentos do pictórico, que têm lugar nos Estados Unidos da América sob a alcunha muitas vezes questionada de Expressionismo Abstrato, é inegável.
Compreender a produção de Falcometa a partir da linhagem informalista e abstrato-expressionista serve antes como estímulo à investigação crítica de sua obra que como legitimação acomodatícia de sua pintura a partir de uma validação ancorada na história dos abstracionismos europeus e norte-americanos.
O que aqui interessa é o mergulho nos processos, métodos, materialidades e sentidos que a aventura abstrata não-geométrica representou para a pintura como exercícios de possibilidades para a tríade que Georges Didi-Huberman (2016, pp. 6-7) identifica como os paradigmas da pintura, a partir do vocábulo sentimento nas Proezie de Leonardo Da Vinci. Para Didi-Huberman, o sentimento se desenha como sentimento (pathos), sensação estética (aiestheis) e significação (sèma).
Em outras palavras, para Angela Falcometa, o pictórico é o amálgama daquilo que se vive (sente) na carne daquele que produz a obra, de como aquilo que se sente na carne pode afetar (o estético) que se instala na carne que é materialidade da obra e de como a carne, que é o corpo daquele que vê, sentirá aquilo que vê na carne da obra em suas ressonâncias como entidade de significação.
O sentido produz-se na carne do corpo. Circulo vicioso de uma retórica calcada na polissemia de seus significantes a dilatar o “sentimento”, segundo a leitura de Didi-Huberman de Da Vinci.
O interesse da artista pelas questões da terra, sua ecologia, sua condição de carne do mundo encontra na maneira como a pintura é vivida, concebida e materializada por Falcometa uma consumada manifestação.
Terra, Carne e Pintura em Angela Falcometa
Em Falcometa, “terra”, “carne” e “pintura” articulam-se, a partir da inspiração de Maurice Merleau-Ponty, em um intricado sistema simbólico e retórico. Terra, carne e pintura operam dentro do território poético que se circunscreve nos limites da pintura de Angela Falcometa como termos intercambiáveis em que as propriedades associadas à literalidade dos vocábulos originais se transportam e se transladam no espaço retórico de sua obra.
Os pigmentos que a artista utiliza tanto buscam observar uma ética ecológica, quanto se originam na exploração quase geológica empreendida pela autora no terreno em que repousa sua ancestralidade familiar na região de Lima Duarte, em que se situa o Parque Estadual de Ibitipoca, em Minas Gerais, quanto ecoam a arquitetura retórica de sua poética e de seus processos.
Angela Falcometa atua laboratorialmente na produção destes pigmentos que carregam em si a carne da terra, não apenas em seus tons e matizes, mas antes em sua própria condição matérica. Em sua obra, realiza-se o sonho encarnado da metonímia: algo da matéria do signo que opera metonimicamente é literalmente incorporado pela figura de linguagem[1].
Assim, o pigmento é a um só tempo matéria e tropologia (emprego de linguagem figurada, conjunto dessas figuras e de suas funções). Ele alude à terra como um significante determinante para os processos poético-retóricos da artista, ao mesmo tempo em que é dela constituído.
O papel desempenhado pela figura tropológica da carne na obra de Falcometa é igualmente nevrálgico para a significação de sua obra, uma vez que a “carne’, como se a desenha nos territórios da artista mineira, enlaça, em sua potência figurativa, “corpo” e “terra”, em um complexo sistema retórico e discursivo.
A obra é carne que enlaça, por sua vez, a carne que é corpo do artista que produz a obra, assim como a carne que é o corpo do sujeito vidente que vê e interpreta a obra, acionando as “vozes” da terra, que ali se infiltrou em sua materialidade por meio de seus pigmentos.
Os lamentos de Gaia, que na mitologia grega, é a “mãe-terra”, elemento primordial e latente, matriz geradora, se fazem sentir na série intitulada Súplicas de Gaia. Na superfície das pinturas, em que cor e textura se irmanam, revelam-se arborescentes estas quase-mandalas, que aparentam reter em sua configuração pictórica os rastros mesmos dos movimentos deixados pelo gesto que as inscreve no espaço ótico que as contém: redemoinhos que se delineiam à maneira de quase ideogramas caligráficos na espacialidade que os recebe.
Torvelinhos a caçar eternamente suas próprias extremidades, que se assemelham a ramagens espinhosas a espalharem-se como serpentes insubmissas e a escorrerem líquidos como tinta que se derrama diante de nossos olhos no espaço que é a pintura: as cores aqui se manifestam em sua concretude mais passional e absorvem a dimensão retórica da semântica que empresta seu tom à produção de Angela Falcometa: carne da terra tornada pintura.
Labaredas quase-mandalas que denunciam a face de Gaia que habita o corpo poético de Falcometa: terra prenhe de significações que apontam para o abismo vertiginoso do fim dos tempos. A mãe-terra vomita suas entranhas. São os desastres e tragédias geológicos que engolem o corpo de quem a habita a carne da terra. Terra carnívora. Terra que acaba por devorar suas próprias vísceras.
A súplica que nomeia a série de Angela Falcometa é o apelo mesmo da terra. Que sua materialização na obra da artista assuma eloquente, em sua carne, as vozes da terra sob a forma de lágrimas coloridas e matizadas, que a dor de sua carne aviltada pela ganância exploratória que revira seu interior despudoradamente, se faça tátil na pintura por meio da cicatriz que são os relevos e texturas que se incrustam como evidência quase topológica, espécie de acidente geológico que confirma a fisicalidade objetal de sua pintura, desinteressando-se em definitivo por qualquer ilusão perspéctica ou mascaramento matérico, é a consumação do projeto retórico-poético de uma artista que soube intuir a coerência que sua obra deveria manter entre significação e materialidade.
Na série Nativas, evidencia-se, assim como em Súplicas de Gaia, um crescente domínio cromático de Falcometa. Aqui a cor surge esfumada, esfumaçada, como que a obter sua visibilidade (sua aparição no espaço da pintura) e visualidade (a particular forma que a distingue de outros signos visíveis) de um sopro que a fizesse disseminar-se algo fantasmal sobre a brancura da superfície que a retém.
O enevoado, a nódoa, a mancha que se espraia configuram-se como elementos que integram a reconhecível sintaxe pictórica da artista e que Falcometa logre atingir a harmonia da composição mesmo que envolta na intensidade passional- e talvez precisamente por esse pathos - de como enfrenta o desafio morfológico do borrão é um feito considerável.
Em Falcometa, não se divorciam forma e conteúdo. Que os elementos da anatomia retórica de sua pintura se dissequem aqui deve ser lido sobretudo como o êxito da empreitada de uma artista que se envolveu visceral e apaixonadamente com a carne da terra que a entregou ao mundo. Sua pintura é nada senão a devolução amorosa, e intensamente passional que a figura de Gaia, mãe-terra, assume em sua poética.
Pintura da carne. Pintura da paixão (pathos). Pintura dos efeitos da paixão (aistheis). Pintura dos sentidos da paixão (Sèma).
Pintura que é carne. Carne que é terra. Pintura: carne da terra.
Ouçamos aquilo que vemos, como num sonho que nos concede um segredo. Lágrimas sobre tela.
Pintura alucinatória de uma terra em chamas, carne ardente, a ascender incandescente aos céus. Mensagem cifrada. Mandala caligráfica a exigir que a contemplemos, que a decifremos, que a vivamos, a um só tempo, na pintura e para além dela.
Ativismo poético e pictórico.
Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna- dos iluminismos aos movimentos contempoâneos. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. Prefácio de Rodrigo Naves. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
DE MAN, Paul. “Hypogram and Inscription” In: The resistance to theory. Foreword by Wlad Godzich. Londres & Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2002. pp. 27-53.
_________________. “Reading and History” In: In: The resistance to theory. Foreword by Wlad Godzich. Londres & Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2002. pp. 54-72.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La peinture incarnée suivi de Le chef- d’oeuvre inconnu par Honoré de Balzac. Paris: Minuit, 2016.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Tradução de Paulo Neves. Edição e Prefácio de Claude Lefort. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
________________________________O olho e o espírito seguido de A linguagem indireta e A dúvida de Cézanne. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Comes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
[1] As elaborações em torno da retoricidade na obra de Angela Falcometa devem-se sobretudo à inspiração teórica de Paul De Man em The resistance to theory. Ver referências.